Em dias frios eu amanheço na febre, sinto o cheiro do mofo. Não há nada
além de poeira e passado. Eu me vejo segurando soluços, contendo lágrimas. Vejo
a lua cheia zombar do meu vazio. Vejo a volúpia do fracasso. Eu nos vejo aqui,
acorrentados nas memórias do que poderia ser e não foi. Reféns da incompletude,
do remorso. Presos num passado que não para de sangrar. E atormenta, machuca,
fere, arranha, e dói. Uma dor sólida, presente, sem economias.
A febre aumenta, a garganta dói, os remédios perdem o efeito e eu
continuo colecionando memórias. O olhar, o sorriso, a vontade, o beijo, o toque,
a mordida, o aperto mais forte, o arranhão. Lembro de tudo com clareza e
lucidez. Sou reminiscência, passado que não esfria, cicatriz sem reparo,
genuína nostalgia.
Nada é novo. Vivo de memórias mofadas esperando a aceitação e o
esquecimento. Condenada ao ciclo do apontar e me desapontar. Vício de
eternidade. É só deixar de insistir e esperar. Porque nunca haverá futuro para
nós. Somos peças iguais de um quebra cabeça. Somos parte de um texto com
palavras perdidas. Somos a ironia, o orgulho, o contraditório. Somos histórias
diferentes de um passado que não volta. Somos distância, abismo, loucura. Somos
apenas lembranças.
Faz frio lá fora e apesar da febre, faz frio aqui dentro também. Mas isso
já não importa. Chega de definhar de saudade, e só definhar. Quero entender que
ter você na prática é mais amargo que na teoria. Quero que a verdade leve esse
desconforto pra longe e me traga certezas. Eu vou me acostumar, você vai se
acostumar. Eu quero o novo, o desconhecido, o amanhã. Mas dessa vez não posso
esperar, a vida lá fora me chama. E hoje posso ver o quanto Clarisse estava
certa:
“Não
me interessa fetiche morto como lembrança”.