sábado, 4 de junho de 2011

Buarqueanas


Elena bateu a porta com força. Daquela vez, ele sabia, era pra não mais voltar.
Juras em vão, flores no chão e declarações vazias. Elena não dançava no mesmo ritmo dele. Nunca dançou. Aquele seu jazz era demais pra um homem que só ouvia valsinhas e escrevia palavras doentes e poemas mortos.

O apartamento era sufocante, nas ruas as flores murchavam nos seus jardins de plástico. A tarde rodopiava os ponteiros do relógio. O céu vestia seu terno cinza e caía sobre os ombros do homem na sacada. E mesmo assim, ele pegou suas chaves e foi à praia. Rezava para que a brisa que lhe convidava ao delírio levasse toda sua alma embora e, junto com ela, roubasse os fragmentos pulsantes de Elena. Queria exorcizar-se.

Sentou-se em frente ao mar e de repente, aquela profusão de águas lhe respondeu. Uma onda estourou nos recifes e trouxe com ela um papel manchado e velho, pra ele, uma distração recente e límpida.  Um retrato em branco e preto, onde duas figuras indistinguíveis formavam um casal. A qualidade era péssima, o estado decrépito, os anos eram muitos, mas eram semblantes felizes.

E como se a realidade cuspisse na sua cara, aquele escritor de meias palavras, retornou a uma órbita chamada Elena. E dividia-se entre a fantasia da fotografia que emoldurava uma era feliz e a tristeza escandalizada que lhe arreganhava os dentes e ria com desprezo na sua cara. Elena gritava o seu nome presa dentro daquele retrato. Não um grito de desespero, mas de rancor. Vestígios de uma vida arruinada pela falta de paixão.

O eco daquelas palavras antigas gritava aos seus ouvidos, e como se conseguisse se enxergar naquele pedaço de papel, ele reconhecia sua própria imagem e ali, a mulher de rosto manchado era realmente a sua Elena. Nesse universo indigesto, frias e anônimas memórias lhe recobravam a lucidez dos dias que ele não viveu.

Aquele homem que era e não era ele, parecia estampar um sorriso estático e insuspeito, comum aos que acreditavam no amor, mas pressentiam dias revoltos no futuro. E o longo paletó de outrora envolvia o vestido de uma Elena serena, um vulcão que não se sabe quando, não se sabe onde, entraria em erupção.
E tal qual pílulas de amargura, as juras falsas de um amor inexistente arranhavam o seu peito. Dizem que o amor é cego, mas o pior é aquele que não se pode ver.

Olhou novamente o retrato agora com outros olhos, havia asco escorrendo dos seus olhos. “Por que a sua Elena não era como a da fotografia?”, ele se perguntava. A essa altura já se questionava se ela era mesmo sua, se o esboço borrado não tinha qualquer sinal vital da autêntica Elena.
Então ele percebeu que atrás daquele papel amassado e sujo, havia algumas linhas rabiscadas. Na sua ânsia por respostas da real Elena, da renovação daquele sentimento, do por quê da sua dor, ele se deparou com parcas palavras que um dia se perderam em um coração:

 “O amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio. Amores serão sempre amáveis. 22/09/1956”

Nas linhas da velha poesia que se renova, o vento que lhe presenteou aquela história soprou-a de volta ao lugar de onde veio, e os dedos cientes do destino que pedia para se completar, folgaram-se. Enquanto o mar mastigava novamente a fotografia, o homem sentia parte da sua história fluindo junto àquele retrato, e resignado, ele tinha a certeza de que em um futuro longínquo, as metades de sua vida teriam um reencontro.